Foto: Islaine Barbosa
uma reportagem que revela quem são as mulheres que, com trabalho, coragem e resistência, movem a gastronomia sergipana mesmo quando ninguém as vê.
Nem sempre é o nome delas que está no letreiro do restaurante. Às vezes, nem mesmo no agradecimento do cliente. Mas por trás do cheiro que invade as ruas, do sabor que marca a memória, da entrega que chega quente à porta, há sempre uma mulher — ou muitas. Invisíveis em holofotes, mas fundamentais nos bastidores. São elas que garantem o café, o almoço, o jantar. Que sustentam o negócio e, não raro, também a própria casa.
Em Sergipe, essas mulheres são muitas e são maioria. Uma pesquisa realizada por esta reportagem, com 83 estabelecimentos do setor gastronômico no estado, revelou um retrato até então pouco explorado: em média, 8 em cada 13 pessoas que trabalham nesses espaços são mulheres. A maior presença está na função de cozinheira auxiliar, seguida por atendente, proprietária e serviços gerais. A coleta dos dados foi feita por formulário online, entre os meses de abril e junho de 2025, com participação voluntária de representantes de negócios da capital e alguns do interior.
É um cenário de contradições, onde a presença feminina é constante, mas o reconhecimento ainda é escasso. E foi a partir desses dados, e de uma escuta atenta, que essa reportagem nasceu. Para mostrar que por trás de cada prato servido, existe uma mulher que resistiu. E segue resistindo.
Como Dona Marieta Santos, de São Cristóvão, que há 81 anos carrega na pele a memória do que foi calado. Mulher negra, herdeira de uma receita nascida entre as grades da senzala, ela molda todos os dias, com as mãos e com a história, a queijada que virou símbolo da cidade.


Com mãos que moldam história, Dona Marieta prepara a queijada que carrega a memória ancestral da senzala e sustenta gerações em São Cristóvão./ Fotos: Islaine Barbosa.
“Quem sai da senzala não tem família, nem herança. Eu não tive. Só tive a pobre da minha mãe. E foi o trabalho que me fez chegar até aqui”, afirma.
A receita, passada de geração em geração, surgiu da escassez: coco, farinha de mandioca, ovos, cravo e canela. Um improviso afetivo transformado em tradição. “Minha bisavó fazia escondida. Era o que ela trazia da cozinha do sobrado. O que era rejeitado virou sustento. Virou nome.”, relata.
Marieta aprendeu ainda menina a quebrar coco às duas da manhã. Nunca parou. O que a move, diz ela, é saber que hoje dorme no que antes era a casa-grande. “As pessoas veem essa queijada e acham bonita. Mas não sabem o que tem dentro. É mais do que receita. É história. É sobrevivência.”, acrescentou.
Da panela ao comando
Se Dona Marieta representa a ancestralidade que resiste, Maria Jair, a Dona Jai, carrega a força da mulher que decide virar a chave da própria história, mesmo quando tudo à sua volta dizia que não era possível. No bairro Siqueira Campos, em Aracaju, ela transformou o que antes era uma vendinha familiar em um dos restaurantes mais tradicionais da região. Começou com um fogão de duas bocas, vendendo na porta de casa. O tempero chamou atenção. E o que era provisório virou destino.


De avental e olhar atento, Dona Jai circula pelo salão e pela cozinha com a autoridade de quem construiu, do zero, o restaurante que hoje comanda com orgulho./Fotos: Islaine Barbosa
Dona Jai é uma entre tantas mulheres que estão à frente de negócios na gastronomia sergipana. Segundo a pesquisa, 52,94% dos estabelecimentos ouvidos têm mulheres no papel de proprietária. Mas estar no comando, para muitas, significa acumular funções: da cozinha ao caixa, da papelada ao salão, do trabalho ao cuidado com os filhos.
A vida não foi fácil, mas ela superou. “Minha mãe não deixava eu estudar. Dizia que bastava saber escrever o nome. Mas eu sempre fui ousada. Quando fiz 42 anos, minha filha me incentivou e eu corri atrás”, conta. Entrou na faculdade, se inscreveu em vários cursos e, aos poucos, foi se vendo diferente. “No começo, eu me sentia pequena. As palavras pareciam grandes demais, o ambiente, distante demais. Mas fui me transformando. Entendi que meu lugar também era ali.”, afirma.
Ela tentou ir ainda mais longe. Ingressou no curso de Engenharia de Alimentos, mas o que encontrou lá não foi acolhimento, foi etarismo. “Os jovens me olhavam com estranhamento. Era como se eu não pertencesse àquele espaço. Decidi sair, mas saí de cabeça erguida. Porque eu fui. Porque eu tentei.” explica.
Hoje, Dona Jai comanda uma equipe consolidada, continua se capacitando e faz parte de programas de qualificação. Seu restaurante virou empresa, e ela, referência. “Sempre digo: mulher tem que saber onde pisa. Mas tem que pisar. Porque se a gente não ocupar o nosso espaço, ninguém entrega ele pra gente.”, acrescentou.
A força por trás da confeitaria
Maria Valdelice, conhecida como Dona Maria, começou como cozinheira auxiliar em um hotel renomado de Aracaju. Mulher negra, discreta, determinada. Com técnica e persistência, foi abrindo caminho até se tornar confeiteira principal — a primeira mulher a ocupar esse posto em uma cozinha antes dominada por homens.
“Já me chamaram na frente dos clientes para agradecer, e vi o espanto. Como se a confeiteira fosse outra pessoa. Como se minha aparência não fosse o que esperavam”, relembra.

Em meio a formas e glacês, Dona Maria trabalha com a precisão de quem aprendeu a ocupar, com talento e esforço, um espaço que antes não existiam mulheres./Fotos: Islaine Barbosa
Hoje, ela é referência entre os colegas e reconhecida pelos clientes. Mas o percurso até esse reconhecimento foi marcado por obstáculos e preconceitos sutis.
“Dizem que o machismo acabou, mas não é verdade. Ele continua, só que de forma diferente. Na hora de uma promoção, o olhar vai primeiro para o homem. Só depois procuram qualidade na mulher. Mas nós temos capacidade. E é isso que falo para as meninas: se eu consegui, por que você não vai conseguir?”, pontua.
Sabor com silêncio: o desafio da inclusão
No balcão de uma gelateria inclusiva em Aracaju, Andreza Rodrigues recebe os clientes com um sorriso firme, os olhos atentos e as mãos ágeis. É surda, negra, mulher e está em seu primeiro emprego formal. Trabalha com dignidade e presença, em um espaço onde ser ouvida não depende da fala, mas do respeito.
“Ser mulher e surda torna tudo mais difícil. Já fui assediada, já fui ignorada. Mas aqui eu me sinto respeitada. E isso me dá força para continuar”, compartilha.


Entre sorrisos e gestos, Andreza atende com leveza e presença. Constrói diariamente o próprio espaço como mulher, surda e profissional da gastronomia./Fotos: Islaine Barbosa
A história de Andreza aponta para um desafio que vai além dos dados da pesquisa: a inclusão de pessoas com deficiência na gastronomia sergipana. Sua presença ajuda a ampliar o olhar sobre quem ainda está fora das estatísticas e do mercado.
“Quero que outras mulheres surdas saibam que é possível. A gente pode estar em qualquer lugar. A gente só precisa de espaço.”, afirma.
Andreza precisou aprender a se posicionar. A colocar limites. A se empoderar. Sentiu as barreiras da comunicação, os olhares atravessados, a falta de compreensão. Mas encontrou apoio em casa, na família que sempre acreditou nela, e em si mesma. “Além de surda, sou mulher, sou negra. E para nós, muitas vezes, falta respeito. Precisei me fortalecer.”, disse.
Capacitar para resistir
O que une muitas das histórias contadas nesta reportagem é a consciência de que, para se manter firme em um mercado desigual, é preciso estar preparada. A capacitação aparece como um dos caminhos mais citados pelas mulheres da gastronomia sergipana para conquistar espaço, respeito e autonomia.

“Muita gente pergunta por que faço tantos cursos, e a resposta é simples: eu preciso. Se eu parar, perco o ritmo, perco conhecimento. Hoje, me sinto reconhecida, mas não foi fácil sair da função de auxiliar num hotel grande, com muitos eventos, para chegar a ser confeiteira principal”, afirma Dona Maria.

“Eu entrei no processo para conquistar o selo de qualidade do Sebrae. Faço oficinas, participo de encontros. É isso que me ajuda a continuar crescendo. É difícil, mas a gente não pode parar”, explica Dona Jai.
A força dessas trajetórias também tem apoio em iniciativas como o Selo de Qualidade Empresarial, do Sebrae. O programa estimula melhorias na qualidade e gestão de empresas sergipanas, com foco em capacitação e valorização de empreendimentos. Segundo o Sebrae, mais de 7 mil mulheres em Sergipe já participaram de capacitações presenciais e online voltadas à gestão, marketing e finanças.
Para Lorenna Bezerra, conselheira da Abrasel Nacional, o número de mulheres no mercado de trabalho vem crescendo, mas elas ainda não ocupam plenamente o papel de protagonistas.“É necessário investir mais em capacitação, dar visibilidade e incentivar que elas assumam, de fato, a liderança dos seus negócios”, destaca.
Ela lembra a importância de iniciativas de formação, como o workshop promovido pela Abrasel Nacional com base no livro Mulheres Boazinhas Não Enriquecem. O evento, realizado em fevereiro e maio deste ano, em Cuiabá (MT), em parceria com a CDL Mulher e o Sebrae Delas, teve como objetivo inspirar mulheres empreendedoras a assumirem um papel mais ativo e determinado em suas jornadas de sucesso.
A última colher
Seja com queijadas que atravessam séculos, pequenos fogões que viram empresa, doces preparados em silêncio ou atendimentos guiados pelas mãos, a força feminina que alimenta a gastronomia sergipana está em todos os cantos. Ela se revela nos bastidores, nos sorrisos de quem serve e na coragem de quem lidera, mesmo quando o caminho parece mais estreito para elas.
Essa reportagem nasceu da vontade de olhar para além do prato servido. De entender quem são as mulheres que sustentam a cadeia gastronômica do estado. E de mostrar que, mais do que cozinhar, elas resistem, carregam e constroem, todos os dias, mesmo quando ninguém as vê.
Como disse Dona Jai:
“Se a gente não ocupar o espaço, ninguém entrega ele pra gente.”